Sentou na mesa de jantar, partiu o pão ao meio com cuidado, passou manteiga dos dois lados, repousou a faca ao lado do prato, então deu a primeira mordida. Mastigou bem, dez vezes, como a tinham ensinado, respirou fundo e disse calmamente: 'Não quero me casar'. Afirmação simples e concisa. Ainda continuou o devaneio: 'Casamento é só uma imposição burocrática.' Todos na mesa engoliram seco. A mãe retrucou: 'Pode se amigar amanhã, mas esqueça que eu existo.' O pai continuou a mastigar a comida, descuidado, como se nada tivesse ouvido. A tia enfiou uma colherada guela abaixo no filho de quatro anos, ela sabia onde aquela conversa iria chegar.
Um minuto de silêncio ensurdecedor, onde só se ouviam os dentes mastigando a pamonha do mês frio e acinzentado de junho. Era inverno, e por isso talvez, os corações estivessem frios e fechados para a felicidade, mas não. A filha, entalada, não com o pão, mas com toda a tradição que rondou sua família por gerações, ainda teve força e ímpeto para dizer: "Casamento é o bom viver." Última sentença, antes ter ficado calada. Chuva de gritos, espasmos, uivos dolorosos sobre só ter tido uma filha e esta não dar nenhuma alegria. Lamentações banhadas a olhares incriminadores. Na verdade, ninguém naquela mesa sabia ao certo sobre o que falava. Se era tradição, amor, convivência, vontade, família, burocracia... cada um falava sua própria língua, incompreensível para o semelhante. O fato é que a filha bateu na mesa e declarou sua sentença de perseguição eterna. Obviamente não estava disposta a levar aquele assunto tão a sério, só queria gerar uma polêmica, mas isso não vem ao caso. O fato é que a filha vociferou a angústia aprisionada na sua alma. Obviamente também, ninguém deu crédito a sua argumentação infundada, a ignoraram. Ninguém na mesa acreditava mesmo que a filha única de um casamento feliz, iria também ter o mesmo futuro promissor de seus geradores. Ela estava marcada para sempre, por ter contado seu segredo a um desconhecido que não a acompanhou por toda vida, como mandava a Sagrada Escritura. Um destino infeliz esperava a herdeira de toda a alegria existente na terra. Teve a oportunidade de ter tudo o que quis, mas escolheu o lado oposto do campo de batalha, escolheu querer não se casar. Não que ela tivesse escolha, mas tinha, e todos tinham que acreditar que de fato ela poderia optar, e sendo assim, escolheria o véu branco, ou ao menos o juiz e seu sermão de papel. Não quis nada disso, ao menos por essa noite de junho, mês frio e tempestuoso, que levou consigo casas, pessoas e escolhas. Um dia saberemos como a história acabou, mas algo me diz que... bem, nada me diz algo, esperemos para ver.
Um comentário:
Debbi, eu poderia ser muito bem essa guria. Mas com pais de casamento fracassado, os quais ainda acham que o futuro da sua prole pode ser diferente. E isso de causar o caos me lembra de algo que eu ia postar no O talvez: Sentei a mesa e comi o pão frio, assim sem nada mesmo. Mamãe e minha irmã acharam um absurdo. Como vc come isso? ah, já comi coisas melhores, ou piores não sei. dando a deixa pergutaram o q? Cabeça de galo na feira da prata. Aquilo sim é comer.
O silêncio ensurdecedor que pode sim, ser o mesmo dessa tua mesa tintila até hoje.
Estamos fora do senso comum minha preta. E acredite, isso é maravilhoso.
Belo texto.
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